Marcia Porto
10/12/2018 - 24/01/2019
No meu trabalho, opero no campo simbólico. Exploro a relação entre literatura, fontes históricas, alquimia, histórias pessoais e eventos atuais. Crio narrativas auto-ficcionais contaminadas por essas referências. As narrativas se desdobram em séries de desenhos, em que é recorrente a presença das Ginaiques, um grupo de mulheres simultaneamente auto-referenciais e estrangeiras, e que se comunicam através de longas tranças.
Entre a palavra e a criação da imagem, interpreto ritualisticamente as cenas. Dessas "performances" nascem os movimentos, os gestos e o tempo das composições dos desenhos.
Pensamentos multifacetados, os desenhos são retrabalhados em pintura, murais, instalações e performances, onde experimento estender as relações espaciais e ritualísticas geradas nas narrativas, através de operações recorrentes.
___________ Ginaiques (mulheres em grego). Consta que essas mulheres ansiavam um lugar por vir. Errantes que eram, passavam um dia em quatro palavras: inversão, transposição, inundação e irradiação. Há muitos anos as Ginaiques esqueceram sua origem e libertas da ordem do tempo evocam:
- Quando foi que deixamos a porta aberta?
A nossa primeira conversa se pautou sobre o seu processo de criação e sobre a sua relação com o atelier em que trabalha.
Depois dessa conversa, fui para o meu atelier para, a partir dela, desenhar o chá, pesquisando e escolhendo as ervas. Na semana seguinte, deixei com ela o composto das ervas com as xícaras e tudo que ela precisaria para os chás que a acompanharão durante o período de um mês.
E tomamos o primeiro chá juntas, nosso segundo encontro.
A seguir, alguns trechos do seu compartilhar extraídos da nossa conversa no dia 10 de dezembro de 2018, o primeiro encontro.
Logo depois, imagens do nosso segundo encontro enquanto tomamos o primeiro chá juntas.
Seguido de trechos da nossa conversa no terceiro encontro, depois de um mês, no dia 24 de janeiro de 2019.
Primeiro encontro
O que tenho notado a respeito do processo do meu trabalho, a partir desse distanciamento de mais ou menos vinte anos, quase a idade do meu filho Pedro, é que eu repeti os mesmos atos nesses anos todos, mas nunca reparei que tinha um ritual. Então você precisa de alguém te perguntando sobre isso para que você perceba o que tem feito há pelo menos vinte anos. Tenho feito rituais. E isso sempre foi muito natural, achei que todo mundo trabalhasse dessa forma. Principalmente porque eu estava numa cidade "muito distante da arte", que eu achava tudo isso muito normal.
Então, eu sentia necessidade, em primeiro lugar, da literatura. Isso é uma coisa que há muito tempo, se eu não ler todo dia, a sensação que eu tenho é que me falta ar. Uma experiência que tive, fomos nós três [Pedro e Paulo, seu marido] para a Itália há uns cinco ou seis anos, e eu comecei a sentir uma falta de algo... não tinha me dado conta bem do que era essa falta.
Depois um amigo nosso nos ajudou a alugar um apartamento bem perto da sua casa no interior do norte da Itália. Era uma micro casa, uma kitnet com uma mini biblioteca com a Emily Dickinson. Todos os livros em inglês e italiano.
E ai eu fiz aquele diário que te mostrei. São poemas que desenhei na hora, com ela, lendo a Emily Dickinson. Alí percebi que, e eu escrevi no diário: "tenho fome disso". E tampou aquele lugar, aquele buraco da falta que eu estava sentindo.
Quando saí de lá, por onde a gente passava, eu comprava esses livros de viagem (de bolso) de poesia, Bukowsky e ficava lendo... Porque sem isso, imagina, você está num lugar que espera há tanto tempo estar, porém... falta algo. Percebi isso só lá, em 2012.
E depois que me dei conta disso, comecei a me lembrar de alguns alguns fatos que ocorreram e que só depois... então na graduação, uma vez uma colega disse assim: "A Márcia não consegue pintar um quadro sem ler pelo menos dois livros". (risadas) Como quem quisesse dizer que meu trabalho fosse de cunho mais teórico. Aí veio outro que me disse: "Você nunca pensou em fazer história da arte? Porque você se interessa tanto por teoria..." E aí você vai vendo que seus colegas acham que seu trabalho não tem lá muito proveito... (risadas...)
Porque era uma questão de técnica.Então eu tinha uma vontade imensa... já devia ter uma coisa poética, porque eu adorava aula de modelo vivo com mulheres, a de homens eu não gostava tanto, mas achava que fosse uma influência do professor, nunca levei muito isso em consideração e... tinha que ler! Então agora, na distância, e adquirindo a técnica que era possível para que eu trabalhasse, percebi que já era... era uma coisa que já se apresentava na graduação, era algo já dentro de mim. Biblioteca, sempre tive desde que saí de casa. Então esse é o primeiro ponto que acho importante.
- A sua relação com a literatura.
Com certeza. E dela, eu gosto muito de fazer uma coleção de frases. Eu uso, ou diretamente no trabalho, ou, futuramente, em algum momento, vai me dar um clic. Na intuição eu sei que devo guardar aquilo. Às vezes gera uma imagem, assim, pof! E ãs vezes aquilo vai ficar um ano, dois...Nessa última exposição [Nada será omitido do que puder ser dito, 2018, na Casa Goya] eu trabalhei com coisas de vinte anos atrás... anotações.
Então eu diria que começa com a literatura, aí eu escrevo coisas sobre. Eu até roubo, sinto que aquilo lá é meu, na maior cara de pau (Risos), as frases.... Em algum momento do dia isso vai ter que acontecer. Não quer dizer que eu vou acordar e já tenho que ler, não tem essa ordem. Posso acordar e já ir pintar. Porém, em algum momento do dia isso tem que acontecer. Tenho que ter um livro na mão. Sempre tenho meu caderno de anotações.
Aí, o segundo ponto sobre o qual eu fui me debruçar é o corpo. Esse sim vem antes. A consciência corporal é fundamental para eu entrar no atelier. E aí eu fui vendo o porquê. Gosto de dançar, e é aquela dança hiper intuitiva. Eu até adoraria fazer aula de dança, mas a hora em que me mandam repetir coisas eu quero morrer... então eu ponho a música e vou seguindo... Mas o importante é que com esses movimentos, a sensação que eu tenho é que eu vou entrando no eixo. E agora, falando para você e também depois da experiência que tive na semana passada com o Ernesto Bonato, percebi que faço isso porque quando eu danço, fico sempre com a ponta dos pés. Mas a hora que eu acabo eu assento. Acho que me promove um estado de consciência. Claro, estou falando isso agora porque estou pensando sobre. Na verdade é totalmente natural. Posso até perder esse estado depois de cinco minutos, mas eu tenho que voltar para ele.
O que eu sinto é que, como a gente banaliza todos os atos da vida pensando no futuro ou no passado..., isso é um assunto aqui, familiar, essa semana. Então você não está no presente. E o que existe é só o presente. O que existe é o que a gente está tendo aqui e agora. Amanhã, ninguém sabe... e ontem já foi, sinto muito, acabou, né?! Então como a gente não vive no presente, está sempre se preocupando com o futuro ou sofrendo pelo que passou. Acho que o ato de dançar pode ser uma meditação para me colocar no presente. Vejo agora à distancia, como se fosse isso. Por isso falei de rituais.
Escolha das ervas para o preparo do chá, para a Márcia, baseada nessa conversa:
Esse encontro [com a modelo atual] foi uma coisa muito lenta. Fizemos vários encontros, fiz essa imersão no meu corpo, na imagem. A modelo me conhece à muitos anos e ela chega, comemos alguma coisa juntas, ela conta da semana dela, falo um pouco da minha, conversamos um pouco, tomamos um chá, ou um café, e a gente começa a trabalhar.
Então o que mudou no meu processo nos últimos meses foi isso, continua igual: literatura, corpo, mas agora tem outro corpo presente. E aí a energia do atelier muda completamente, tem uma mulher de trinta anos aqui dentro e a hora em que ela vai posar passa a ter a idade que eu quero. Então muda o rítmo, o pique, tudo!
É um barato, a primeira vez que ela veio, eu ia fazê-la em grafite, nanquim, extrato de nogueira, separei até tinta a óleo e uma tela. Quando ela viu, ela já estava há três horas posando e claro que eu não dei conta de tudo! Porque eu com as minhas imagens costumava varar a noite e... tudo ali exigia outro tempo, porque também tinha o limite físico da outra pessoa.E isso foi ótimo, porque percebi que o que eu preciso agora é presença. E esse é o nosso acordo.
O que é bom é sentir que é essa relação que vai coordenar meus gestos e minhas cores. A presença dela. E ela trabalha comigo... ela fala nós. Ela não fala o seu trabalho, ela fala o nosso trabalho, porque ela está trabalhando. Modelo, normalmente não tem essa consciência, ela sabe que está fazendo arte junto comigo. É bom porque você tem uma cúmplice, é como se eu tivesse mais uma Ginaique.
Depois, um outro ponto que eu gosto muito é sobre a cozinha da arte. Fico pensando nessa culinária. Eu adora pensar assim, tem tal trabalho, com que linguagem seria, não só um suporte, mas seria a própria poesia.
Uma coisa que busquei por muitos anos, aí é legal dar aula disso, porque você tem que aprender coisas que você nunca vai fazer para o seu próprio trabalho. E às vezes vem, como a tinta óleo que agora voltou com força total. Eu estava sem pintar a óleo há muito tempo, há muito tempo. Daí você sente isso como, é como um faro. O desenho não estava mais dando conta, dava conta mas não dava... e como agora, voltar a desenhar com modelo vivo, que é outra energia física. Então lá estou eu de novo com o meu corpo em relação à outro corpo né... Isso é uma viagem!
Porque sem isso, é como se eu colocasse no automático, e fico fazendo o que eu sei fazer. E não descubro nada. Então, eu fiquei muitos anos trabalhando com a minha própria imagem porque era uma questão mais fácil. Então, vou lá, fotografo, coloco no computador, já olho, já faço, e fiquei muito tempo... O que eu sinto agora, em termos de diferença, é que parece que o trabalho, não que eu negue aquilo, de jeito algum, mas ele é pasteurizado. Sabe aquela coisa meio... falta uma presença. Por mais que eu estivesse presente, mas faltava uma presença. É essa presença que te faz não racionalizar o ato da expressão. Porque senão, com a imagem na sua frente, você tem muito mais tempo para elaborar. Isso é péssimo para desenhar! Para pintar também! Porque pintar, você não vê as cores numa foto, né, numa foto a pessoa sai monocromática. Então, por exemplo, mesmo que eu queira mudar a cor da pele da pessoa. Por isso que esses trabalhos aqui, eles não têm cor de pele, esses aqui atrás, por que eu não via, né?! Então eu não me atrevia a fazer, porque cor de pele, é outro assunto. Tem tudo quanto é tipo de cor aqui!
Então, assim, isso me animou de novo, porque por um bom tempo eu pensei que eu só desenhasse.
O meu trabalho nesse momento é o que estou desenvolvendo com a modelo e que se dá a partir da minha leitura do livro Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.
- Ela me conta a história do livro.
Então isso tem muito a ver com o nosso momento no Brasil das eleições. E essas duas coisas, o livro e o momento atual me fazem pensar: até onde vai a sua rebeldia? Até onde você esquece dela e você vai virando de novo o disco e falando, há... tudo bem, se vai ser assim... assim será. Então vou viver minha parte... e a gente vai esquecendo, porque vai banalizando... aqui de novo, mais uma bosta aqui, mais uma bosta lá, então eu pensei: está faltando uma revolta no meu trabalho!
A revolta ocorreu, mas ela está meio que... deu uma esvaziada... porque fizeram isso mesmo, esse esvaziamento.
Então com base nisso, pensei nessa narrativa dessas mulheres, são as mesmas mulheres da última exposição, só que elas estão sem enxergar, elas voltam todas, estão voltando, algumas voltam por debaixo da terra outras por cima, elas se encontram e começam a fazer um ritual de preparo para a guerra. Essa guerra ninguém sabe contra quem é. Não tem um inimigo declarado, não se sabe quando será também. Elas estão se preparando.
O instrumento delas, as armas que elas têm, é o cabelo, o cabelo se transforma em várias coisas, por isso que elas têm que cuidar porque chegam descabeladas, então tem que pentear, depois lavar, depois esticar, tramar, e assim vai.
O segundo ponto seria um cortejo, todas seguem com uma flâmula, alguma coisa à mão para poder chegar no lugar. Porque penso numa revolta à moda antiga.
- É uma revolta mesmo, ou uma espécie de resistência?
É, é mais isso sim, é resistir. É como se existisse núcleos dessas mulheres e eu estou vendo e acompanhando um deles. Porque sei que elas não estão sozinhas, sabe?
E elas estão mobilizadas em defender algo, não é?!
Sim, e não fica claro o quê e também não é claro contra quem ou o quê. E é bom que seja assim, porque não estou aqui para resolver história alguma.(risos).
Mas isso me fez sair um pouco da meleca que está a nossa política. Porque como eu não controlo o trabalho, não sei no que vai dar e eu me dei o prazo, quer dizer, não controlo mas estabeleço algumas regras, e eu me dei o prazo do ano de 2019 inteiro para fazer esse trabalho. Não tenho pressa. Porque não sei o que vai acontecer no meio do caminho. Me comprometo só com ele hoje e mais nada. Vou focar só nisso. Ela posa uma vez por semana e os outros dias eu trabalho em cima disso.
- Então será todo esse processo, esse momento do seu trabalho que será permeado, atravessado pelo Por acontecer no átrio do chá?
- Com certeza! Vai ser um bando de mulher juntas! [Demos um Viva às Ginaiques!]
- Gostaria que você falasse um pouco mais sobre elas. Quem são as Ginaiques?
- As Ginaiques..., o que eu sei delas é que são nômades e que se esqueceram da sua origem, então elas anseiam pelo lugar por vir, elas não têm preguiça, elas vão!
Depois que o Ernesto Bonato falou que a pintura só tem ida, não tem caminho de volta, isso é a vida, né?! E como elas se esqueceram, não sei se, em algum momento, uma delas irá se lembrar, eu só sei que elas andam demais por aí, andam por debaixo da terra, por cima e mais àcima.
- E aparecem por aqui de vez em quando... (risos)
Com muita frequência! (risos)
- Então, já que estamos de volta aqui para o atelier, podemos pensar agora na sua relação com esse espaço através delas, das Ginaiques.
- Sim! Tanto é que a idéia inicial da exposição na Casa Goya era que as Ginaiques invadissem a casa, a Karina gostou muito do projeto e abriu o espaço para realizá-lo.
Porém, ao chegar lá, vi que já era um lugar habitado, no qual trabalham quatro mulheres fortes. Então pensei... é desnecessário invadir esse lugar, ele já está muito bem dominado! (risos)
Tanto é que elas me chamam de quinto elemento, (risos), então acabou virando outro grupo de Ginaiques, entendeu?!
E os espaços onde eu trabalho sempre foram espaços em que eu também moro. Então, em Araçatuba, era um atelier imenso, eram duas salas, uma garagem paralela, com um fundo, banheiro, tanque, era um lugar bonito e a casa ficava restrita depois do corredor.
Sempre tive o atelier em casa porque não consigo separar as coisas. Eu não consigo me imaginar chegando no atelier às oito da manhã como uma operária, batendo cartão. E eu sempre gostei de ficar com eles [com a família]. Isso nunca foi um problema, muito pelo contrário, então...
Depois eu me mudei para Botucatu, para a Demétria, e foi a mesma coisa, o atelier sempre em casa. Quando eu vim para cá, em São Paulo, o atelier era o menor da minha vida [em alguns andares à cima, no mesmo prédio, em outro apartamento]mas daí eu aluguei esse apartamento maior, só para o atelier, [continuava morando com a família no apartamento de cima]e me vi produzindo cinco meses aqui e vi que adoeci um pouco em relação a isso. Porque o espaço, amplo... Eu acho maravilhoso! Mas eu estava assim: nada me puxava para fora dele.
Então uma sala era uma linguagem, a outra era outra linguagem, a outra sala recebia amigos, a cozinha foi invadida também e eu ia até fazer escultura lá fora. Porém, isso é maravilhoso, mas a questão é que eu não saía desse circuito. Então eu não saía para a vida, né?! Você vai, mergulha, mas você precisa voltar! E o que fez falta foi a família justamente. Então percebo que, agora, eu fico mais tranquila em trabalhar com menos espaço, é muito doido! Eu não sinto que já habitei totalmente as possibilidades daqui, tem coisas que me incomodam, muito seriamente, mas... não há lugar ideal, se vc ficar esperando as coisas acontecerem, você não trabalha. Se é o que você tem para hoje, ele vai ter que render tudo que você precisa naquele espaço.
Então, estou sentindo, por exemplo, hoje vai ter aula e eu preciso dessa mesa, a aula acaba, arranca tudo depois da aula para ela poder posar lá trás. Então é fácil de desmontar, vou adaptando e quando chegam as férias eu arranco tudo e domino inteiro o espaço. Porque eu não estou mais acostumada a ter trabalho de aluno no meu atelier, eu tinha antes porque o atelier era grande, e eu não compartilhava a parte em que estavam os alunos, quer dizer, o meu trabalho eu fazia numa área que era só minha.
Mas nem isso agora está me incomodando, porque foi uma opção muito consciente também.
E sempre, por uma coincidência bem entre aspas, o atelier fica sempre no coração de todas as casas. Foram quatro casas, duas na Demétria, uma em Araçatuba e essa aqui. Sempre ele fica assim, bem no meio [em relação aos outros cômodos], no coração da casa. É bem interessante, eu fico no lugar do encontro familiar, habito o espaço que seria da sala. Por isso que os amigos foram sempre recebidos no atelier. Eu não tenho sala. Então é um espaço do meio da casa e, agora falando para você, é um espaço de transformação mesmo, porque ele vira o que é necessário naquele momento. Agora, por exemplo, [final de dezembro], vou receber meus pais, mas eu não vou me desfazer do atelier, não vou transformar isso numa sala de estar, numa sala de jantar... senão também, eu enlouqueço, né?! Então, quem entra aqui tem que se habituar a saber que vai conviver com isso. E, normalmente vou invadindo os outros espaços, banheiro, cozinha... Esse espaço, para mim, nesse momento, se encaixa perfeitamente. Ele pode não ser o maior espaço como era antes, porém, psicologicamente, é perfeito.
- Ele lhe dá a medida, a sua medida.
-Isso! Está na hora de comer! (risos) Alguém te chama para isso, né..., vamos assistir um seriadinho... aí vou lá.
Achava que a arte era curativa até alguns anos atrás, porque morei num lugar em que a arte era puramente terapia. Hoje acho que não. Há poucos dias recebi uma amiga aqui e, conversando com ela, ela me falou: - Não acredito que arte seja curativa, a gente paga o preço por ser artista. E ela me fez pensar. Foi muito puxado para mim, fisicamente, esse processo dos cinco meses trabalhando sozinha aqui, então é um risco, a ponto de eu ouvir do Paulo: -Você não vai entregar seu corpo para o trabalho, não é? Porque você precisa dele para trabalhar.
Alguém precisa te dizer que aquela é uma hora importante de parar, de voltar e respeitar o limite do corpo. Pode ser perigoso. Percebi que eu fico tão imersa que eu não percebo, não percebi.
- Na sua relação com o espaço então, ao mesmo tempo em que ele te permite o mergulho, ele também, pela forma como ele hoje se configura, e isso foi um aprendizado, em sua dinâmica e tal, ele também te resgata, te devolve a você mesma, numa dinâmica de expansão e recolhimento.
Isso mesmo. eu vendo assim, os artistas que vivenciaram esse processo, são artistas que tiveram babás nas suas vidas. Na história da arte, tem muito artista que só existiu, sua obra só foi possível, porque alguém cuidou dele. O William Kentridge, há pouco, quando esteve no Brasil, uma aluna minha ajudou a montar a exposição dele, ela falou que ele anda com um personal life, ele não dá conta. Ele não dá conta de saber a hora em que tem que chegar no hotel, não dá conta de conciliar sozinho o trabalho com as questões do cotidiano. Falando assim, parece uma coisa meio pedante, mas não é!
Não estou me comparando, não se trata disso, estou falando de processo. Por exemplo, o Giacometti não existiria sem o irmão e a esposa. O irmão era artista, deixou seu trabalho para cuidar dele, vender seu trabalho e a mulher ali. A mulher do Pollock, também, uma grande artista, deixa de pintar para cuidar dele. Então, quando você não tem... quem zela aqui, são os meninos, né?! Eu não tenho alguém de fora que trabalhe junto. Para você poder mergulhar, você precisa ter alguém que te busque. Quando você não tem isso... você precisa pular de pára-quedas, porque senão você cai feio. E eu não quero isso para mim.
Agora, se você me perguntar, se eu puder escolher, que atelier eu teria, escolheria um galpão. Porque o que eu senti aqui quando trabalhei os cinco meses, quando era só o atelier, que eu não posso ter paredes separando o trabalho. Porque como eu trabalho com paredes, coloco minhas referências nelas de cima a baixo, eu preciso, preciso ver foto das minhas avós, eu preciso, preciso ver. Todo dia certos ítens. Então se eu tivesse um lugar maior, teria que ser um lugar com quatro paredes. O que muda é o meu movimento. Interessante, porque estou mudando a minha escala, estou reduzindo, trabalhando num espaço menor. E o que eu senti antes, com o espaço maior, é que ainda não é isso. Não é pintar num quarto que me interessa. Me sinto confinada ali. Quero ter um espaço em que eu olhe tudo aqui e agora. Quero fluidez. E as paredes lotadas de referências e de quando em quando mudar.Esse é o espaço que seria para mim o ideal. Eu tento fazer isso aqui dentro. Ainda estou no início, porque foi recente a mudança e tal. Mas nada impede que eu faça de conta que é um galpão. Rearranjo os móveis de lugar e fica flúido, eu escondo todas as cadeiras, não existe espaço tomado por outra pessoa. Então, acho que esse movimento no espaço é como se fosse uma dança, visual mesmo, não só do corpo, né?! Você olha pra cá, pra lá, pra lá, então você se concentra, não se dispersa. Você não está no atelier perfeito, com aquele móvel perfeito... isso me irritaria profundamente. Aquela coisa com os armarinhos todos arrumadinhos, eu não conseguiria, sabe?! Pode até ter, mas eu tomaria todas as paredes com imagens, talvez eu tivesse que pôr o armário no...ar! (risos) Suspenso! Que é necessário, mas eu tomo paredes. Quanto maior o atelier, e já tive atelier imenso, fica pequeno.
Eu percebo que a artista, durante muitos anos, fez o papel secundário, a professora estava com o papel principal. Quero encontrar um lugar em que os dois estejam juntos. Eu acho que já encontrei, um não controla o outro. Porém a artista agora, ela se acha, sabe?! (Risos) Então aquilo eu coloquei ali porque acho que as pessoas têm que ver outras coisas, e a outra não deixa (risos).
Segundo encontro
Da semana passada para essa, fiquei pensando ainda na história do espaço do atelier. Pensei que, ainda não sei como, mas o que se faz urgente, apesar de ele não ser enorme, é que ele precisa ser mais cenográfico. É o que eu sinto falta. Olhando para as paredes e tentando manter esse diálogo, eu preciso, para trabalhar, manter certas coisas. Então as fotos das minhas avós estão ali. Sempre. Isso faz mais de quinze anos. Preciso olhar para elas eventualmente.
Sinto que o que me falta agora é material cenográfico mesmo, assim, chifre, bico, coisas que eu quero pôr na mulher. Queria fazer isso agora, de papel maché, começar a fazer esses objetos.
Com muita influência da Paula Rego, que tem um atelier assim que é imenso, mas ela tem os cabides com as roupas, a parte dos monstrinhos que ela põe lá, os bonecos, coelho gigante, essas coisas. Porque às vezes os animais que eu quero colocar não são animais que existem, então eu tenho que começar a fazer isso. Sinto falta desses seres habitarem aqui, não está habitado ainda, completamente.
Deixa eu pegar a água do chá que já ferveu.
Terceiro encontro
Eu fui percebendo, desde o ano passado, e você sabe, a questão da simbologia do gesto, isso está dentro de mim... Usei isso na exposição da Casa Goya com consciência e sem. Eu não sabia muito bem e, ao mesmo tempo, sabia, fiquei até então nesse limiar. E o que sinto que surgiu no processo do chá com o espaço foi a necessidade de apresentar a xícara para o espaço. Porque se o meu trabalho é gesto, então eu comecei a oferecer para o espaço e não para as pessoas que estiveram aqui comigo. E aí eu fiz o registro, as fotos não estão tratadas.
E aí eu não sei se você viu que eu postei umas fotos que tirei para poder... porque é assim, estou nesse trabalho com a Mariana, sem pressa alguma, e vou fazer algumas, lembra que eu falei que quero uma coisa meio de cinema, assim, você tem uma cena como aquela, eu quero fazer um óleo de um gesto, e o movimento dela. Então pode ser só a mão, pode ser um detalhe, sabe? Como isso que quero fazer aqui... Então os gestos tem as mãos dela, isso para mim é tudo. Ontem brincamos de louva-deus, porque ela vai ser um louva-deus. O gesto do louva-deus é tudo! Então, durante os rituais que eu fiz com o chá, à princípio eu não era consciente, mas comecei a perceber que era a mão, sempre a mão entrando. E eu já estava fazendo isso! (risos)
Então ficou uma coisa tão intrínseca, tão verdadeira, que eu não sei te dizer quem chega primeiro, a hora que eu acordei... e aí eu fui tendo uns insights.
Essa mulher que oferece a mão, nesse quadro, ela vai estar separada dessa outra, por uma cortina de cor, como se fosse uma névoa, ela vai estar ligeiramente separada, só a mão na frente, um pouco mais para cá. Acho que na hora em que eu separar um pouco os planos cromáticos, ela vai chegar para frente e essa mão em primeiro plano tem que ser muito boa. Quero colocar a mão e o rosto, só, o resto vai ser mais solto.
E, nosso velho assunto, né, estamos sempre no entre. Então fiquei pensando na mão que está aqui. A hora que isso entra... ele fisiologicamente vai, mas onde é que está o entre em que as coisas acontecem? Fiquei pensando nisso que é o Aby Warburg. E aí eu fiz o meu texto que é um diagrama, claro, não poderia ser diferente.
- Ela me mostra o diagrama que desenhou e fala sobre ele.
E eu acrescentei isso hoje, eu aprendi essa palavra "diegético" com o Pedro.
Diegético é a ficção, o espaço fictício, o tempo fictício.
E comecei assim: começa com o chá, e aí mãos, gestualidade, e aí lembrei do Warburg, né, a falta do gesto é que promove a morte, sua sobrevivência vem do gesto! A hora que isso veio, eu falei, claro! Por isso que ele fala que esse movimento patético, sabe, que tem na transição da Idade Média para o Renascimento, que o Renascimento é muito teatral. De vez em quando quando você vê no Renascimento o vento só em alguém, ele fala, isso é o pathos, sobrevive algo aí nesse movimento, algo cultural na imagem está implorando para sobreviver em meio a uma ausência de movimento, de vento. É um vento em um só personagem, no resto não. Isso é muito o que eu penso do meu trabalho, sabe?! Então aqui no diagrama, onde eu coloquei a letra "A" é o "átrio", tá?!
Porque o átrio é o entre.
Bom, eu tenho essa paixão, o ano passado o Giotto, agora..., o Giotto tem essa gestualidade... mas uma gestualidade medieval ainda, uma coisa mais sagrada. Não que Masaccio não tenha, mas eu grudei no Masaccio. E eu já postei Eu te amo Masaccio, o ano passado era Eu te amo Giotto.
E entre as mãos que eu quero produzir poeticamente e as mãos que ele fez, para mim é o átrio.
Então, entre o gesto do chá, essa idéia das mãos, do movimento, [e apontando o diagrama vai me mostrando:] que aqui para mim, simboliza muita coisa, né, a vida, a sobrevivência, o líquido que tem dentro, tudo isso... entre essa mão e esses gestos do chá, chá, chá... (como no diagrama) e o Masaccio, para mim é outro átrio, então eu fui criando vários espaços...
E aí, estava lendo o Warburg, quando ele fala da cara emotiva que tem no gesto. Só que para mim, essa cara emotiva aconteceu, nesse processo, entre a mão e a boca.
Eu fique pensando assim, em apresentar isso no espaço e depois, o que ocorreu na emoção ali, voltar para a boca, então vou engolir isso.
Fiquei pensando sobre isso. E aí, o átrio disso é justamente o ofertar para o espaço.
Então não era a pessoa, nem o espaço que está lá fora. É o oferecer ao espaço aqui.
Então entrou aqui a arquitetura. Nesse processo em que realizei isso, senti algo como se fosse um benzer. Se você olhar as fotos, vc vai ver que é bem ritualístico.
Como eu já começava o dia com o chá, eu o tomava no café da manhã e era só ele, tudo depois se integrava, virou ritual tudo.
Então não dava para tomar o chá sem pensar o chá para o espaço. Então eu comecei a tomá-lo e, com essa percepção, comecei a oferecer ao espaço propositalmente. Daí então comecei a fazer as fotos. Também pensei: quais cantos? E existirão ainda outros! Então na hora em que isso vem eu procuro sentir qual é o lugar que está precisando disso naquele momento. Eu penso nisso. Ali, por exemplo, eu ainda não fui ali.
E você falou o que você tem a dizer ao seu espaço, mas ouve o que ele tem a dizer a você. E daí acabou. E você saiu e em uma semana meus pais chegaram para o Natal. Então tudo mudou por aqui. Ficava me perguntando, que horas eu vou ter a resposta? E demorou... começou o ritual da boca e da mão, mas até chegar... e eu conseguir ouví-lo, há de ter silêncio, por caridade! E por conta das festas, esse movimento meio que ficou em suspenso. Tive que dar o tempo até que ele pudesse falar.
Também me perguntei, quando finalmente aconteceu, será que estou ofertando ao ausente? Mesmo oferecendo ao atelier, será que era para a ausência? E eu não falo ausente como se para uma pessoa. E isso ainda vai dar pano para manga, porque eu não tenho resposta alguma. E agora, conversando com você, a ausência talvez seja a de chamar essa mulherada junto, eu não sei.
E aí, pensando no movimento, nos movimentos do corpo, pensei também no contra-movimento e no contra-tempo.
Porque assim, meu trabalho está todo no movimento do corpo, especialmente aqui né, braços e mãos. Quando vou atrás disso, poeticamente, será que estou indo contra o tempo e contra o movimento, o movimento dos padrões?
Estou falando coisas que não sei. Eu vejo outro átrio no contra que eu não sei o que é. E tudo isso eu vou usar aqui e lá, no meu trabalho. Então se as Ginaiques vão para a guerra, elas estão indo contra. Contra-tempo e contra-movimento!
Aquela obra do Masaccio que é O pagamento do tributo, é uma obra que me pegou demais, tudo ocorre na mesma cena! Jesus vai entrar na cidade com os apóstolos, e um guarda exige para isso o pagamento do tributo e eles não têm um tostão. Tudo ocorre na mesma cena. Os apóstolos falando mas como, Jesus?! E ele fala para o Pedro pegar na boca do peixe a moeda. E Pedro faz aquela cara tipo, enlouqueceu agora o Senhorzinho... (risos). Ali já aparece Pedro abrindo a boca do peixe, e aí Pedro paga o tributo. Então o que seria o contra-movimento? Seria: vocês não podem entrar. Só pagando. O que é interessante é isso, é uma cidade fechada como a Idade Media, é como se eles entrassem num feudo. Então é um contra-tempo e um contra-movimento. E aí tem que reverter tudo à favor. E tudo isso está no texto bíblico. Mas o impressionante é que há muito mais informações na imagem dessa passagem bíblica.
Imagina hoje, o que a gente não faz de movimento e contra-movimento em uma conversa simples?
Mas não acho que o contra-movimento seja algo ruim. Muitas vezes, o contra-movimento, de certa forma, adensa o que virá a ser o movimento. Não quer dizer que o contra-movimento vai me atrapalhar.
Enfim, são desdobramentos desse processo que aconteceu através do chá e sobre os quais tenho pensado.